“Um homem não vive do que come,
diz um antigo provérbio, mas do que
digere” . Jean Anthelme Brillat-Savarin, A fisiologia do gosto
Neste artigo sobre alimentação faremos uma introdução ao assunto. Fica cada vez mais pertinente discutirmos a dieta pois tornou-s difícil entender, com tantas informações disponíveis, qual a melhor comida para as pessoas. Engraçado pensarmos que o único animal, chamado de racional e o topo da evolução, que tem esta dificuldade é o Homo sapiens. Nós não conseguimos imaginar uma vaca, no seu habitat natural, com dificuldades em escolher o capim mais verde e tenro da esquerda ou as ervas mais antigas e secas da direita. Ou mesmo pensar em um gorila africano, perdido na floresta, sem conseguir decidir qual vegetal é mais adequado ao seu almoço. Esta “duvida cruel”, sobre a melhor dieta é característica da modernidade. Mas, por que precisamos de superespecialistas para nos indicar a melhor comida se os animais nunca passam por este questionamento? No texto que segue colocaremos a visão do Ayurveda sobre ahara, palavra sânscrita, que significa alimento e com isto tentaremos elucidar qual a melhor alimentação para o ser humano dentro desta filosofia médica oriental.
Definição de Pathya:
“ Pathya ou comida saudável é aquela que não é prejudicial ao corpo e
é agradável a mente” Charaka Samhita ( principal texto de medicina interna)
O Ayurveda dá muita importância a pathya e afirma que se o paciente faz uma dieta fundamentada em pathya, ou seja, fundamentada em comida saudável, não há necessidade de tomar remédios por que apenas pathya irá acalmar e tratar o adoecimento, principalmente nos estágios iniciais. Por outro lado se o paciente não segue uma alimentação saudável, denominada apathya, tomar medicamentos não terá o resultado esperado, pois ele estará se intoxicando várias vezes ao dia. A comida que traz saúde deve necessariamente ser agradável a mente, pois, se não for saborosa, pode haver aversão a dieta o que será também deletério ao bem estar físico mental do ser humano.
A pessoa deve alimentar-se na quantidade adequada. A quantidade de alimento consumida depende do poder de digestão, ou seja, do fogo digestivo (agni). Charaka afirma que a quantidade adequada é aquela que não perturba o equilíbrio e é digerida no tempo correto. Por exemplo, se nós jantarmos de forma compatível e nosso agni (fogo digestivo) estiver competente, pela manha a comida já terá sido digerida e teremos fome novamente. A quantidade dos alimentos não pode ser padronizada pois depende do fogo digestivo ( agni) de cada individuo e mesmo este varia em situações diferentes. Afirma-se que no inverno e na juventude a capacidade digestiva é maior que no verão e na velhice. Na Gujarat Ayurved University ouvimos a seguinte frase: “Digestão é mais importante que alimentação”. Significa que não adianta seguir a melhor dieta do planeta se não temos capacidade digestória para digerir e metabolizar a comida adequadamente. Se nosso fogo digestivo (agni) está incompetente (fraco) podemos ingerir apenas uma salada e sentirmos dificuldade e peso após a refeição. Vejamos a afirmação do Charaka Samhita (principal texto de medicina interna):
“ …os alimentos leves têm predominância nas qualidades de Vayu ( ar) e
Agni ( fogo) Já os pesados apresentam as qualidades de Prthvi ( terra) e
Ap ( água). Logo de acordo com suas qualidades as comidas leves estimu-
lam a fome e pela sua natureza são consideradas menos prejudiciais, mes-
mo quando utilizadas em excesso…Por outro lado os alimentos pesados, por
serem considerados supressores da fome, são deletérios se consumidos em
excesso, a menos que haja um forte poder digestivo alcançado pela atividade
física. Então a qualidade do alimento depende do poder da digestão incluindo
o metabolismo” ( Charaka Samhita, trad. Dash e Sharma , 2007: vol I, p. 107)
Os alimentos considerados leves (laghu) são aqueles que possuem predominância de Ar (vayu) e Fogo (agni) na sua constituição pois aumentam o fogo digestivo e não agravam os doshas. Porem, os considerados pesados apresentam maior concentração de Água (jala ou ap) e Terra (prthivi) e tem qualidades opostas a capacidade digestiva levando a agravação dos doshas. A recomendação é estimularmos a ingestão de comida leve e evitarmos o excesso daquelas consideradas pesadas. Porem, podemos consumir mais alimentos pesados se nossa capacidade digestória estiver aumentada pela prática regular de exercícios físicos e uso de condimentos, picantes e quentes, que aumentam o poder digestório (agni), Ex: gengibre, canela, açafrão da terra, noz moscada e pimenta do reino. Na visão do Ayurveda nós não somos o que nós comemos, nós somos aquilo que nós digerimos. Dr. Vasant Lad, famoso médico ayurvedico, descreve as qualidades opostas de alguns alimentos relacionando aos 3 pares de gunas ( qualidades ou características) mais importantes:
Qualidade | Alimento | Qualidade | Alimento |
Pesada (guru) | Carnes, queijos e amendoim | Leve ( laghu) | Arroz, pipoca, brotos e gengibre |
Fria ( sheeta) | Trigo, leite, hortelã | Quente ( ushna) | Pimentas, álcool e ovos |
Oleosa ( snigdha) | Queijos, abacate e coco | Seca ( ruksha) | Centeio, painço e granola |
( Lad, 2002: p. 262)
Segundo Charaka os alimentos utilizados na quantidade apropriada ajudam a trazer vitalidade, longevidade e felicidade. Alguns são especificamente recomendados por este autor: arroz ( arroz vermelho é o melhor), feijão moiachi (greem gram), sal de rocha, amalaki, (Emblica officinalis) e ghee (manteiga clarificada). O acharya Vagbhata, importante autor budista medieval, definiu a quantidade correta de comida durante a refeição: “Metade do estomago deve ser preenchido com alimentos sólidos, um quarto com líquidos e um outro quarto deve-se manter vazio para o ar” ( Vagbhata, Ashtanga Hrdayam, trad. Murthy, p.132)
A mensagem do Ayurveda é que nunca devemos comer até ficarmos empanturrados, pelo contrario, devemos sair da mesa com um pequeno espaço no estomago. Durante a refeição podemos usar um pouco de água morna, nunca usamos líquidos gelados, ou até uma pequena quantidade de chá de ervas digestivas, como o funcho ou erva doce (Foeniculum vulgaris). Evita-se trocar a mastigação adequada pela deglutição com excesso de líquidos. Nesta visão indiana não existe quantidade mensurável do alimento, pois tudo depende da capacidade digestiva da pessoa o que é ditada pelo agni ( fogo digestivo) individual. Aquele antigo adágio: “tomar café como um príncipe, almoçar como um rei e jantar como um mendigo” pode ser utilizado aqui, pois o nosso agni segue as forças da natureza, o sol é o grande doador de agni e está na sua plenitude no meio do dia, quando devemos fazer a principal refeição. Já no final do dia o poder digestivo está diminuído (decréscimo do metabolismo) e a refeição deve ser mais leve. Sentimos isto ao comer uma refeição pesada no almoço (por exemplo: uma feijoada) e, um outro dia, repetirmos a refeição pesada no jantar. A digestão noturna, do mesmo alimento, é mais difícil e pode perturbar o sono. Devemos dar um espaço adequado entre a última refeição e o sono (recomenda-se dormir cedo e acordar cedo) para digerirmos adequadamente os alimentos antes de deitarmos.
Além disto, existe o ênfase no uso adequado dos 6 sabores (rasa) na alimentação. Os sabores tem suas propriedades relacionadas aos elementos associados. A comida considerada saudável deve ter todos os sabores, uma alimentação com apenas um ou dois sabores não é adequada a promoção da saúde e longevidade do ser humano. Quando os acharyas (mestres) falam dos sabores eles referem-se aos gostos presentes nos alimentos naturais. São aqueles alimentos que nós conseguimos imaginar crescendo na natureza que estão nos textos tradicionais do Ayurveda e são tônicos da nossa vitalidade. Esta é outra mensagem importante: troque os alimentos industrializados por comida fresca, variada, e, de preferência, orgânica (frequente as feiras orgânicas). Observe a tabela dos sabores, elementos e os doshas: Vata ( V), Pitta (P) e Kapha (K):
Sabor ( rasa) | Elemento | Potencia (virya) | Ação (karma) |
Adocicado (madhura) | Terra e Água | Frio, leve e oleoso | < P e V e > K |
Azedo/ácido (amla) | Fogo e Terra | Quente, leve e oleoso | < V e > P e K |
Salgado (lavana) | Fogo e Água | Quente, pesado e oleoso | < V e > P e K |
Picante (katu) | Fogo e Ar | Quente, leve e seco | > V e P e < K |
Amargo (tikta) | Ar e Éter | Frio, leve e seco | > V e < P e K |
Adstringente (kasaya) | Terra e Ar | Frio, pesado e seco | > V e < P e K |
( Onde o símbolo > representa agrava e o símbolo < significa pacifica)
Encontramos no Charaka Samhita as 10 regras dietéticas que devem ser seguidas pelas pessoas saudáveis (o ser humano em adoecimento deve receber orientação individualizada):
1- A comida deve ser quente: o alimento quente tem melhor sabor, estimula o fogo digestivo ( agni), digere-se mais facilmente e rapidamente, facilita o movimento descendente de Vata ( aliviar flatos e evacuação) e também tende a dissolver Kapha (mucosidades).
2- A comida deve ser untuosa: os alimentos oleosos são deliciosos, estimulam o fogo digestivo (agni) adormecido e são digeridos mais facilmente. Auxilia o movimento descendente de Vata, fortalece o corpo físico, gera firmeza nos órgãos dos sentidos e promove clareza na compleição.
3– A comida deve ser ingerida na quantidade adequada: Os alimentos utilizados na quantidade adequada promovem longevidade, não perturbam os doshas, nem o fogo digestivo (agni), são facilmente digeridos e eliminados. Divide-se o estomago em 4 partes: 2/4 ou a metade de comida, ¼ de líquidos ( morno ou temperatura ambiente) e ¼ vazio para o movimento dos doshas ( devemos sair da mesa com um pequeno espaço no estômago).
4- Deve-se alimentar-se apenas quando a refeição anterior tiver sido digerida: se nós comemos antes da refeição anterior ser digerida isto leva ao distúrbio dos doshas. Por outro lado ao se alimentar após a refeição previa ter sido digerida, os doshas permanecem equilibrados, o agni ( fogo digestivo) é beneficiado, os canais permanecem abertos, o coração sente-se bem e ocorre a descendência normal dos flatos, fezes e urina. Mas como ter certeza que a refeição anterior foi digerida? Através da fome, para o Ayurveda somente devemos comer se tivermos fome. Se nos alimentarmos adequadamente, com um fogo digestivo competente, teremos fome no horário adequado.
5– Deve-se evitar alimentos onde os componentes possuem propriedades antagônicas: neste caso, evita-se os distúrbios provenientes da dieta ao unir alimentos com propriedades contraditórias. No Ayurveda isto chama-se viruddha ou comida incompatível. Citamos algumas misturas que são comuns na nossa realidade, que devem ser evitadas:
- Alimento Incompatível
Peixe | Leite |
Frutas ácidas | Leite |
Mel | Ghee ( mesma quantidade) |
Iogurte | Frutas, leite, queijo, ovos e carnes |
Bebidas quentes | Manga, iogurte, queijo e peixe |
Limão | Pepino, tomate, leite e iogurte |
Feijões | Frutas, leite, iogurte, queijo e ovos |
Ovos | Frutas, leite, iogurte, queijo, peixe e feijões |
(Valiathan, 2009: p. 57 e 58 e Lad, 2012: p. 73)
6- Deve-se alimentar-se em um local agradável com todos os utensílios adequados: as refeições devem ser realizadas na mesa onde devemos encontrar todos os acessórios úteis a uma boa refeição. Além disto, o local deve ser apropriado, ou seja, tranquilo, para uma dieta saudável. Evita-se o estresse e a tensão durante as refeições.
7– Não se deve alimentar-se muito rápido: ao comer muito rápido a pessoa não sente o sabor dos alimentos e também não terá tempo adequado para uma boa mastigação.
8- Não se deve alimentar-se muito devagar: comer muito lentamente pode levar ao aumento de ingestão de alimentos, a comida fica fria e haverá irregularidade na digestão.
9- Deve-se alimentar-se de forma concentrada: evita-se falar e rir a mesa ou comer de forma desconcentrada. O hábito de comer assistindo televisão, usando o celular ou no computador deve ser evitado pois é deletério a digestão.
10- Deve-se investigar se aquela dieta e comida estão adequadas:. Somente devem ser consumidos alimentos apropriados aquela pessoa que busca saúde. Buscamos evitar usar alimentos industrializados e priorizamos a “comida de verdade”, aquela que nós conseguimos imaginar crescendo na natureza. A dieta deve ser variada, devemos usar comida fresca, com os 6 sabores, da mesma região e estação do ano que nós vivemos (comida, normalmente, encontrada nas feiras).
Finalizamos com a afirmação de Vagbhata no seu inspirador Ashtanga Hrdayam:
“Aquele que satisfaz-se diariamente com alimentos saudáveis, executa, apenas, as atividades que são benéficas, que não é apegado (demasiadamente) aos objetos dos sentidos, que desenvolve o ato da caridade, que considera todos como iguais (agindo com gentileza), com sinceridade, com perdão e mantendo a companhia de pessoas boas, torna-se livre de todas as doenças” ( Vagbhata, Ashtanga Hrdayam, tradução de Murthy, 2007: vol I, p 52)
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